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Deixa-me sonhar, antes de escrever por Pedro de Sá
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Poemas
Mas, mas… O olhar inflexível fulminava quaisquer adversativas, apenas um
Atenção ao tempo! E ele, de caneta hesitante, a olhar aquele rectângulo
de mundo envidraçado, a folha, em cima da mesa, numa obscenidade
demasiado branca, como se daí adviesse um insulto desafiante, sim,
qualquer coisa que periga a honra, porém, a caneta agora entredentes, um
Atenção ao tempo sussurrado agora já noutro canto da sala, ampliado
pelo silêncio demasiado artificial para aquela hora do dia, e a questão,
que renascia para logo se evolar no sem sentido de si, a inquietá-lo,
de novo, vira costas ao mundo com um descair de pálpebras, apenas um eco
plástico a tamborilar-lhe nos dentes a relembrá-lo da sua
circunstância. O eco, neste momento, a afastar-se, como se permanecesse
num qualquer lugar de partida, neste mundo de viagens, ele a olhá-lo da
sua carruagem, cada vez mais longe, num galope crescente, para onde vai?
Não sabe, ao princípio tudo difuso, vai ao sabor do acaso de si, por
dias solares, encontros duradouros, aqueles onde se regressa para um
sentido das coisas, no fundo, quando perdemos a bússola e necessitamos
de uma nova, sim, um pouco isso, quando contemplamos um rosto e, de
súbito, a voz arrasta-se, num contraste gritante com a velocidade do
sentir, como se representássemos, mas não, estamos ali por inteiro,
apenas a voz em passos de bengala, não, não conseguimos acelerar a
palavra, porque o olhar num rosto e o sentir desencontrado do pensar,
mas são tão raros os rostos numa vida que provoquem este desencontro! E,
sim, já não ouço canetas, apenas o compasso da carruagem que me leva ao
país de mim. Quantas vezes não regressamos a nós? Agora, estamos num
jardim, sombras convidam-nos à frescura de um espreguiçar sempre lento,
proponho-lhe, num verbo arrastado, que nos sentemos naquele banco,
debaixo da cascata chorosa de um choupo, para acabarmos o gelado. A
saboreada doçura fresca em antítese com o calor das emoções, mal
disfarçadas em gestos estéreis e desarmoniosos, de pretenso candidato a
artista. Mas o olhar devolve a doçura e frescura saboreadas, ao
percorrer um rosto, na sombra de uma tarde de sol, enquanto as palavras
se precipitam no esquecimento, apenas subsiste a melodia de uma voz, um
entrelaçar de dedos, e um beijo imaginado. A carruagem acelera, a
memória da caneta cada vez mais longínqua, agora, após os gelados, a
sombra de um banco de jardim, o entrelaçar de dedos, caminhamos na
indolência de sorrisos e piadas cúmplices, nisto, uma bola ao nosso
encontro, uma criança corre atrás dela, na urgência de retomar o jogo,
talvez a vitória próxima, eu já não com o rosto que me demora o olhar,
sim, a velocidade da carruagem, eu, com a bola, de regresso ao jogo,
olho à minha volta, reconheço cada amigo da rua da minha infância (todos
temos uma rua de meninice), as balizas demarcadas por pedras da
calçada, mas a abnegação de cada finta, de cada remate, de cada
incentivo, de cada reprimenda, continha a genuinidade de uma força
irrepetível. Após uma corrida para segurar a bola, uma finta como as da
televisão, preparava-me para passar a bola entre as pedras da calçada
(que risível sou, e desonesto também, na realidade ia marcar um golaço
monumental!), quando uma voz Atenção ao tempo! Como quer que escreva de
olhos abertos? As palavras não nascem do olhar. O eco da caneta agora em
gritos. Olho o rectângulo envidraçado de mundo. O cinzento lá de fora
ecoa no silêncio artificial desta sala. Levanto-me. Como querem que
escreva longe de mim? Resolvo entregar. Mas, para espanto meu, a folha
preenchida. Que terei escrito? A mão crispada da Atenção ao tempo já no
ar para se apoderar da folha. Deixo-a ir. Talvez por lá encontre as
marcas de uma carruagem, um banco de jardim sob as lágrimas doces de um
choupo, a alegria de um golo, e, por fim, a emoção singular da verdade
de um beijo.
Retirado do Blog Livros de Sofá da Chiado Editora
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